1.10.2010

A náusea.

É uma espécie de enjoo. De repulsa.
Por qualquer razão, de súbito começamos a reparar melhor em coisas, situações e relações a que parecíamos estar habituados ou a que éramos indiferentes, e sentimos uma vertigem.
Ficamos com uma hipersensibilidade à falta de qualidade de tantas coisas que nos rodeiam.
Reparamos que temos lama nas solas e quem nem batendo com força os pés no chão ela salta.
Pode ser a esplanada na bela da beira-rio, que nos apresenta um menú desgraçado.
Filetes de corvina no forno com natas. Corvina mal descongelada, com natas. Aqui à beira rio?
Tudo com natas. Parece que deram ao Diabo uma concessão no Paraíso. Porquê? É de direito natural que estes marmanjos explorem esta coisa neste sítio tão bonito? Porque é que ninguém os corre daqui? Enjoo, enjoo.
Pode ser a nossa amiga de quem o namorado faz gato-sapato. Ouvimo-la mil vezes, damos-lhe o mesmo conselho e ela volta ao mesmo. Porquê? Não tem amor-próprio? Coluna vertebral? Mais não, please. Não venhas outra vez com essa conversa. Enjoo. Náusea.
Aquela sensação, tão habitual, de que se vive sempre num contínuo desenrascanço, a fazer tudo em cima do joelho, de que ninguém pára para pensar, torna-se insuportável.
Nesse estado de hipersensibilidade, olhamos tudo ao microscópio. Deixamos a vista desarmada de lado. Passamos a achar que tudo precisa de ser pasteurizado.
Passa a ser perigoso abrir o jornal.
Mesmo em países que nos pareciam, pronto, civilizados começamos a sentir qualquer coisa de fétidozinho no ar. Olhem para o que se passa em Inglaterra, com a falta de qualidade da política. Pior do que a nossa.
Não há nada de novo. Isto sempre foi assim. Pode estar pior, mas sempre foi assim. Só que, ao acordarmos do estado catatónico, ao sacudirmos o torpor, revela-se toda a nossa impotência.
É esse a fonte da náusea. A nossa impotência para mudar as coisas num ápice. As mudanças são feitas devagarinho. Com avanços e recuos. Agora recua-se.
Percebemos o significado profundo de sermos assim mesmo. É a mancha humana, como dizia o outro. E não gostamos. Mas depois passa. Olhamos para umas coisas mesmo bem feitas, temos umas alegrias colectivas e passa. É uma espécie de doença bipolar social, que se apoderou da psique europeia.

9 comments:

Catraia_Sofia said...

Só posso dar os parabéns pela forma simples e intensa como escreves. Adoro ler estes "apontamentos" teus.

"Nesse estado de hipersensibilidade, olhamos tudo ao microscópio". :)) BRUTAL! :))

Martim said...
This comment has been removed by the author.
Martim said...

Muito obrigado! Confesso que escrevi este texto em estado de profundo desapontamento em relação ao que se passa em Inglaterra com a demagogia em torno dos bónus dos banqueiros. Até em Inglaterra já um cheirinho mau na política.

João Amaro Correia said...

martim,
já tinha visto o teu desapontamento no status. mas repara: a demagogia está a atravessar toda a europa. e acho até que a mais funesta é a nossa cá do sul, pobre e desajeitado e longíquo. que sofremos com os nossos males e desejamos ardentemente sofrer os dos outros. que dizem 'modernidade'.

j

Martim said...

Não te acompanho, João. A raíz é comum, cá e lá: um despotismo obscurecido que se instalou, convencido de que se pode dizer e fazer tudo que ninguém liga ou que, mesmo que ligue, aceita e cala. E se perdemos modelos civilizacionais, como o inglês, perdemos tudo.

João Amaro Correia said...

nessa perspectiva anglicista acompanho-te eu.
mas we'll always have copacabana beach.
já te mostro o hotel onde anda o toni.

j

Clara said...

eu não acompanho nenhum dos dois. "modelo civilizacional", esse modelo não nos serve a nós nem tem de servir, não somos anglo-saxónicos graças a Deus.

mas somos certamente o país europeu que mais se deslumbra com o que se passa "lá fora".

Su said...

Martim - Parabéns pela deliciosa escrita e pela visão apurada.
Clara - Igualmente e não há nada que agradecer, eu é que agradeço por este sítio fresco e cheio de coisas boas e peço desculpa pelod descaramento do roubo!

Anonymous said...

excelente, martim! partilho tudo contigo. sinto muitos vezes o mesmo enjoo, a mesma náusea.

pessoas com extremo bom gosto