É uma espécie de enjoo. De repulsa.
Por qualquer razão, de súbito começamos a reparar melhor em coisas, situações e relações a que parecíamos estar habituados ou a que éramos indiferentes, e sentimos uma vertigem.
Ficamos com uma hipersensibilidade à falta de qualidade de tantas coisas que nos rodeiam.
Reparamos que temos lama nas solas e quem nem batendo com força os pés no chão ela salta.
Pode ser a esplanada na bela da beira-rio, que nos apresenta um menú desgraçado.
Filetes de corvina no forno com natas. Corvina mal descongelada, com natas. Aqui à beira rio?
Tudo com natas. Parece que deram ao Diabo uma concessão no Paraíso. Porquê? É de direito natural que estes marmanjos explorem esta coisa neste sítio tão bonito? Porque é que ninguém os corre daqui? Enjoo, enjoo.
Pode ser a nossa amiga de quem o namorado faz gato-sapato. Ouvimo-la mil vezes, damos-lhe o mesmo conselho e ela volta ao mesmo. Porquê? Não tem amor-próprio? Coluna vertebral? Mais não, please. Não venhas outra vez com essa conversa. Enjoo. Náusea.
Aquela sensação, tão habitual, de que se vive sempre num contínuo desenrascanço, a fazer tudo em cima do joelho, de que ninguém pára para pensar, torna-se insuportável.
Nesse estado de hipersensibilidade, olhamos tudo ao microscópio. Deixamos a vista desarmada de lado. Passamos a achar que tudo precisa de ser pasteurizado.
Passa a ser perigoso abrir o jornal.
Mesmo em países que nos pareciam, pronto, civilizados começamos a sentir qualquer coisa de fétidozinho no ar. Olhem para o que se passa em Inglaterra, com a falta de qualidade da política. Pior do que a nossa.
Não há nada de novo. Isto sempre foi assim. Pode estar pior, mas sempre foi assim. Só que, ao acordarmos do estado catatónico, ao sacudirmos o torpor, revela-se toda a nossa impotência.
É esse a fonte da náusea. A nossa impotência para mudar as coisas num ápice. As mudanças são feitas devagarinho. Com avanços e recuos. Agora recua-se.
Percebemos o significado profundo de sermos assim mesmo. É a mancha humana, como dizia o outro. E não gostamos. Mas depois passa. Olhamos para umas coisas mesmo bem feitas, temos umas alegrias colectivas e passa. É uma espécie de doença bipolar social, que se apoderou da psique europeia.
9 comments:
Só posso dar os parabéns pela forma simples e intensa como escreves. Adoro ler estes "apontamentos" teus.
"Nesse estado de hipersensibilidade, olhamos tudo ao microscópio". :)) BRUTAL! :))
Muito obrigado! Confesso que escrevi este texto em estado de profundo desapontamento em relação ao que se passa em Inglaterra com a demagogia em torno dos bónus dos banqueiros. Até em Inglaterra já um cheirinho mau na política.
martim,
já tinha visto o teu desapontamento no status. mas repara: a demagogia está a atravessar toda a europa. e acho até que a mais funesta é a nossa cá do sul, pobre e desajeitado e longíquo. que sofremos com os nossos males e desejamos ardentemente sofrer os dos outros. que dizem 'modernidade'.
j
Não te acompanho, João. A raíz é comum, cá e lá: um despotismo obscurecido que se instalou, convencido de que se pode dizer e fazer tudo que ninguém liga ou que, mesmo que ligue, aceita e cala. E se perdemos modelos civilizacionais, como o inglês, perdemos tudo.
nessa perspectiva anglicista acompanho-te eu.
mas we'll always have copacabana beach.
já te mostro o hotel onde anda o toni.
j
eu não acompanho nenhum dos dois. "modelo civilizacional", esse modelo não nos serve a nós nem tem de servir, não somos anglo-saxónicos graças a Deus.
mas somos certamente o país europeu que mais se deslumbra com o que se passa "lá fora".
Martim - Parabéns pela deliciosa escrita e pela visão apurada.
Clara - Igualmente e não há nada que agradecer, eu é que agradeço por este sítio fresco e cheio de coisas boas e peço desculpa pelod descaramento do roubo!
excelente, martim! partilho tudo contigo. sinto muitos vezes o mesmo enjoo, a mesma náusea.
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