10.07.2008

À porta do supermercado



foto Richard Avedon

Estão vários como ele. Mas ele é diferente. Vejo-o a correr para o meu carro e antes ainda de estacionar estou a afirmar "hoje não lhe dou moeda" mas sei que não é verdade. Ele enfeitiçou-me e não há vez nenhuma que não lhe dê a moeda. Ele não pede. Limpa-me uma mancha de resina que anda há meses no capot do carro. Sorri quando saio. Gosta do meu filho e o meu filho gosta dele. Sorri muito. Chama "lagarto" ao meu filho por ele ser do Sporting. Cheira a vinho mas tem um discurso absolutamente coerente. E sobretudo, sorri sempre, não se queixa, antes dá a impressão que tomou a profissão de arrumador como coisa séria, carreira a seguir na vida e a desempenhar na perfeição.
Faz-me pensar, o que fará uma pessoa como ele, fluente na fala, transbordante de simpatia, amoroso com as crianças ("olha a mana, vai para o pé da mana"), escolher este modo de vida dependente da caridade dos outros.

Já dentro do supermercado estaco à frente da prateleira dos vinhos. Não percebo nada de vinhos e atormentam-me as memórias que cada um deles me traz de alguém - O Monte Velho do V., o Duas Quintas do T., o P.P. do P., e por aí adiante - penso nele, provavelmente entende mais de vinhos do que eu e ajudar-me-ia a escolhe-lo.

Quando saio, é ele que vem a correr, limpou-me o resto do capot e vem-me ajudar com os sacos. Ao meu agradecimento responde, laconicamente, "não custa nada ajudar". Sorri ainda.

A coisa é simples, nós é que a complicamos.

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