O estado de “sozinho” pode gerar um misto de encantamento e embriaguez.
Falo do estado de “sozinho, mesmo sozinho”.Não me refiro ao estado “sozinho com pontas soltas”. Com coisas por resolver, que vão e vêm. Isso não é estar sozinho. É a pior coisa que há. Essas pontas dão-nos muito trabalho, a tentar atá-las ou desatá-las. Por ali nos consumimos, sem glória nem proveito duradouro. Ficamos focados na ponta e desfocados do que nos rodeia. Perdemos o bom que circula à nossa volta.
Acho que há cinco anos que não estava sozinho, mesmo sozinho. Tudo começa com uma decisão racional. E com um grito dado a nós mesmos. “Haja dignidade, pá !”, por exemplo. Dignidade para não magoar mais quem gostamos muito, mas não o suficiente. Ou dignidade para nos recusarmos a ser mais magoados por quem não gosta o suficiente de nós. Ou então, se for esse o caso, berramos “esta gaja é uma pulha. Não lhe vou perdoar mesmo”. Inscrevemos no nosso cérebro esse mal todo e com ele vacinamos o coração. Inicialmente custa estar sozinho, mesmo sozinho. Mas depois, aos poucos, vamos começando a saborear-nos. Há quanto tempo não nos saboreávamos, é a pergunta que surge à nossa frente. Deixamos de ter “dates”. Começa a ser natural chegar sexta à noite sem nada combinado. Ou sem a pressão de combinar algo. Para marcar espaço.De súbito, tudo se torna simples. Os amigos deixam de dizer “podes trazer alguém” e dizem apenas “vem”. Começamos a sentir um imenso poder. O poder de saber que não dependemos de ninguém. Começamos a ver a beleza à nossa volta. O nosso humor torna-se mais acutilante. Deixamo-nos de merdas. Sentimo-nos disponíveis para o que de novo aí vier. Deixamos de depender do passado. Deixamos de estar à espera e passamos a ter esperança a sério.Podemos vestir sem receios aqueles boxer anti-sexy, mas tão confortáveis, sem receio de que não possamos estar à altura das circunstâncias, porque sabemos que não vai haver circunstâncias dessas.
Nesta quadra de presentes, o sozinho, mesmo sozinho foi o melhor que pude oferecer a mim mesmo. E sorrio, porque amanhã à noite terei a sorte de estar a admirar as iluminações de Natal nos Champs Elysées. Como o ano passado. Como em todos os últimos anos.
27 comments:
Parabéns. Excelente post. Se me permite, tente este registo um pouco mais confessional e talvez por isso, mais delicado. Onde começa a ficção, isso será sua propriedade, o que não deixa de ser confortável.
Muito obrigado pelas suas palavras. Geralmente escrevo sem me levar minimamente a sério e sem um "level agreement" implícito comigo mesmo.
Dois Natais que já passei em Paris e por más razões. Mas as iluminações dos Campos Elíseos são lindas. Anda imensa gente na rua. O frio é mesmo assim. De "level agreements" nada percebo, mas admiro-lhe a honestidade.
Marquei este blog nos favoritos ontem, acho. Nem sei como vim cá ter. E hoje estava a ler estas linhas e pensei assim: bolas, é isto mesmo que vou querer escrever um dia destes. Tal e qual. Bom, excluindo a parte dos boxers, que não uso. ;)
em bicos de pés, também eu. tirando que já me senti assim e depois passou, mas é uma coisa que vem e volta.
Sei bem como é, e quanto é bom! Afinal tão bom quanto o seu contrário, triste é quem vive apenas a vida numa única modulação.
Bom Natal por Paris.
~CC~
Clara, enquanto vai e volta "aprende-se" mais sobre o estado de estar "sozinha, mesmo sozinha". Digo eu que quando volta não há-de ser tão difícil... (se é que te percebi) :)
o meu vai e volta era perfeitamente mental, que estou sozinha há anos.
pleno acordo
Nunca estive tanto tempo sozinha, mas sei estar sozinha. Preciso. Valorizo isso. Preciso.
Estar sozinho é aprendermos a gostar de nós pelo que sempre fomos e realmente somos e não do nosso reflexo no outro. Do reflexo do outro em nós. É saber que a felicidade passa somente e apenas pelas nossas mãos, pela nossa vida, pelo que quisermos, sem ter nenhum fio preso a uma mão que possa alterar isso.
E estar sozinho, em última análise, prepara-nos imenso a saber estar com alguém.
Straight to the point. Gostei mesmo muito porque (também) me revejo nestas palavras.
Abbatoir Blues
martim, martim.
we'll always have paris.
[e a pç. do pequeno-almoço]
mas às vezes custa.
a clara explica.
estava ali a fumar um cigarro e a pensar se não daremos demasiada importância à nossa solidão.
j
às vezes sim. outras não [eu]. às vezes gosto. outras não. e do outro lado era igual. é impossível.
Uma das coisas que mais aprecio neste estado é a ausência de expectativas, nossas e do outro. Esta ausência é, para mim, uma forma de liberdade.
João, este post não é sobre a solidão. É antes sobre a libertação das merdas inconsequentes em que os nossos impulsos mais imediatos ou os nossos receios mais profundos nos metem.
paris estava cheia de neve. Linda. A pç do pequeno almoço é já amanhã.
Abraço
Vim cá parar por acaso e gostei imenso deste post. Identifico-me com grande parte dele.
Sozinha, mesmo sozinha tb foi o presente que me ofereci este Natal.
Estupidamente já me tinha esquecido do bom que é sentir-me INTEIRA.
Sofia, gostei muito, é isso mesmo. sozinha = inteira, não = a pessoa que ainda está incompleta por n ter a sua cara metade como nos filmes e nas séries manhosas.
Genial.
Gostei tanto desde post, não podia deixar de comentar..
Dar o grito ou não?
Martim... vim cá para em "estado deambulatório".
Gostei. Porque concordo... mas mais que isso, pela coragem.
O grito, o poder, o "nós mesmos...".
Um beijinho,
Potente!
Parabens!
É mesmo isto que quero! Só com dois grandes pormenores ;), mas é mesmo isto que quero!
Muito bom.
sim, sozinha, assim, como dizes, sem pontas. que liberdade! quanto tempo durará? escreves muito bem, Martim. é difícil parafrasear-te. é mais fácil quase citar-te. obrigada
Haja forças para desatar de uma vez as pontas soltas e saborear essa verdadeira solidão, finalmente, sem me parecer demasiado amarga, é o que peço...
Bom post.
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