11.20.2008

Da dormência

Já a vinha sentindo há algum tempo, começou por uma leve impressão nos dedos dos pés que foi subindo insidiosamente, quase sem se fazer sentir, pois essa é a característica da dormência, não deixar sentir.
Não posso dizer que foi mal-vinda. Há qualquer coisa de tranquilo na dormência, na ausência de pânico, no encolher de ombros sistemático.
Mas comecei a ficar cansada e então o meu amigo disse tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida. Um sentido. Reparo no pequeno caos que se foi instalando à minha volta, nas roupas dos meus filhos que já não lhes servem, no aspirador que se avariou, nos projectos que tinha e que fui deixando de ter.
Almocei com um outro amigo no outro dia, aconteceu-lhe uma coisa desagradável. Fico furiosa quando coisas dessas acontecem aos meus amigos. Coisas que saem fora do falta de dinheiro amor tempo sexo vontade de tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida há alguém que o ameaça, que o faz sentir acossado estupidamente.
O meu iPod caiu ao chão e está avariado tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida e de repente essas duas coisas que me são preciosas, o meu amigo acossado e o meu iPod avariado são uma única coisa que me acorda tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida sinto subir uma fúria tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida e apetece-me bater na pessoa que acossa o meu amigo, apetece-me espezinhar o iPod tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida tenho sono e a máquina do café não funciona foda-se tens de arranjar um sentido qualquer para a tua vida subi de novo as escadarias da Baixa-Chiado foda-se hoje almoço sozinha foda-se a luz da falta de gasolina já se acendeu no tablier foda-se a mensagem que tinha de mandar ontem a uma amiga não foi processada por saldo insuficiente foda-se ainda nem recebi o salário de setembro foda-se tenho um emprego que não gosto foda-se tenho de arranjar um sentido qualquer para a minha vida.

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